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Conversa com Carol Drudi

“Será que você consegue por algumas horas deixar todas as suas inseguranças de lado e se permitir sentir prazer plenamente?”, pergunta a filósofa e artista visual Carol Drudi. Em um bate-papo com a Devora, ela revela como está sendo aprender a lidar com a própria sexualidade. Também comenta sobre maternidade e relacionamentos.

Confira a seguir a nossa conversa e as imagens de seu primeiro ensaio fotográfico, inspirado no filme “The Dreamers” (Os Sonhadores), registrado pelo fotógrafo Ronaldo Zanchetta:

Carol Drudi é feminista e ativista cultural em Mirassol (Foto: Ronaldo Zanchetta)

Como você enxerga o corpo?

Quando eu tinha 22 anos eu comecei a estudar um assunto que por muitos é subestimado, mas que mudaria minha vida por completo. Alguém me deu um livro do Nietzsche na mão e questionou minha capacidade de compreender o filósofo. Como boa capricorniana que não pode ver um desafio como oportunidade de aprender, peguei todos os livros de filosofia que encontrei pela frente e estudei até conseguir entrar na Faculdade Federal de Pelotas, no Rio Grande do Sul. Foi uma enorme surpresa quando descobri no meu primeiro dia de aula que naquela faculdade tinha um grupo de estudos sobre Nietzsche com dois professores incríveis, um que trabalha com maestria questões relacionadas ao eterno retorno e transvaloração dos valores e o outro é um dos maiores especialistas sobre niilismo no Brasil. Ambos foram meus orientadores, e através deles conheci os chamados “moralistas franceses”, nesse momento tive contato com algumas reflexões sobre o corpo e o ser, os moralistas estudavam o homem por ele mesmo, escreveu Francois de La Rochefoucauld (1): “Não são nossas virtudes, muitas vezes, mais que vícios disfarçados.”. Lendo os Ensaios de Montaigne pude ter outras reflexões acerca da auto-observação e da compreensão do corpo.

Entre todos os filósofos que estudei foi de fato Nietzsche minha maior referência. Em Zaratustra, o filósofo diz que “o corpo é a grande razão”. O autor condenava o pensamento cristão pois segundo ele, “desprezava o corpo”. Segundo o alemão, do ponto de vista biológico, nosso corpo poderia ser considerado enquanto “grande”, possuindo impulsos inconscientes e por isso suscetível às paixões. O pequeno corpo seria a relação da razão com o macro, a possibilidade que esta tem de tornar o sujeito consciente de si e do mundo, mas é considerado micro pelo filósofo pois – diferentemente da tradição – a razão aqui é vista como limitada.

Quando mudei pra concluir meu curso na cidade universitária em SP, outras questões acabaram vindo junto, pude perceber que é meio impossível passar por qualquer curso na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas na Universidade de São Paulo sem se tornar um ser mais político do que se era antes. A faculdade exalava isso, foi aí que eu comecei a ter contato com feminismo. Podia ouvir e ver algumas reuniões de coletivos feministas no meio dos corredores, era comum os alunos se unirem por todas as pautas de esquerda pra debater e se manifestar. A USP é palco de grandes formações e manifestações, não passei imune. Como mulher tive contato com o feminismo pouco antes de me tornar mãe e acho que essa sequência de aprendizados me levou ao que tenho hoje de concepção do que é o corpo e a quem pertence, quais são as regras morais que regem meu ser; quais impulsos me dominam; foram uma série de aprendizados e conhecimentos que me levaram ao que tenho hoje como certo.

Para Simone de Beauvoir, o corpo humano é possuidor de suas esferas, a passional e a racional, assim como é para Nietzsche. Entretanto, ambas as esferas não estariam inseridas numa lógica hierárquica: ao mesmo tempo que os indivíduos estão determinados por situações (contexto) subjetivas, ainda assim existe a possibilidade de fazer escolhas, sendo a liberdade fruto da racionalidade.

Unindo filosofia e política entendo que o corpo é movido por impulsos, devo e posso experimentar o que bem entender, tomando o cuidado apenas de medir em que grau consumo o que consumo. Não há pecado em experimentar, não há condenações eternas. Apenas tentativa e erro. Mas sobretudo respeitar o próprio limite do corpo e estar disposto a tentar ultrapassar as próprias barreiras. A vida é essa, não existe outra, é nessa que devo viver tudo aquilo que estou disposta a viver e nisso implica se amar livremente.

É um preço alto, mas será que você consegue por algumas horas deixar todas suas inseguranças de lado e se permitir sentir prazer plenamente? Porque esse é o lance, se permitir.“, afirma Carol (Foto: Ronaldo Zanchetta)

Como é a sua relação com o seu?

Posteriormente ao curso de filosofia me tornei mãe, gestei minha filha no meu ventre e pari de forma natural, foi um parto humanizado, uma gestação consciente de cada etapa, essa experiência por si só foi bastante libertadora. Existem muitos tabus acerca da sexualidade na maternidade, mas posso dizer com segurança que é um momento de profundo conhecimento do próprio corpo. Me senti eu mesma o próprio Montaigne, fazendo diário do que comia e como meu corpo reagia, foi uma experiência que somada a amamentação em livre demanda até minha filha ter 5 anos me fizeram compreender como o meu corpo funciona e o que funciona ou não pra mim. Principalmente depois de amamentar assim, ter que ceder o corpo me fez compreender e valorizar que o meu corpo pertence somente a mim. Observando sempre, analisando as oscilações normais de humor e impulsos, compreendendo e tendo paciência com o próprio tempo. O corpo da mulher tem outras formas de se relacionar com o mundo e o universo, é um alinhamento que favorece ou desfavorece como nos sentimos, são inúmeros fatores e com eles a única coisa que podemos fazer é ter paciência e respeitar nossos processos.

Foto: Ronaldo Zanchetta

Não existe uma receita, minha história diz somente a minha história, a vida das mulheres se assemelha em fatores, principalmente como somos reprimidas, mas é impossível passar uma fórmula de como se “libertar” sexualmente, acho que um bom ponto de partida é se respeitar primeiro e passar por cima de muitos conflitos internos, estar disposta a lidar com questões profundas do seu próprio ser e o mais importante, se permitir sentir prazer, porque essa é a questão, o quanto nós mulheres nos permitimos e o que estamos sujeitas a receber da sociedade por isso. É um preço alto, mas será que você consegue por algumas horas deixar todas suas inseguranças de lado e se permitir sentir prazer plenamente? Porque esse é o lance, se permitir.

Foto: Ronaldo Zanchetta
Foto: Ronaldo Zanchetta

Como foi o seu processo de descoberta da sua sexualidade?

Posso dizer que está sendo. Diferente de homens que tem sua vida sexual elaborada desde muito novos, nós mulheres somos reprimidas até depois de adultas, somos sexualmente exploradas desde sempre, porém pouco sabemos sobre nosso corpo, nossa sexualidade. Não é incomum uma mulher crescer e passar a vida toda sem conhecer o próprio corpo, eu mesma passei boa parte da minha vida adulta fazendo sexo pelos motivos errados, por isso que falamos em “processo” e “descoberta”, de fato é um processo, se desvincular do que fomos ensinadas toda a vida, soltar todos os preconceitos, os próprios julgamentos, os traumas que já passamos (que só pioram muito mais esse entendimento sobre o próprio corpo). É como se redescobrir e amar cada parte de liberdade que consegue conquistar, é um processo de soltar amarras e se perceber ser autônomo e livre, é emancipador.

Foto: Ronaldo Zanchetta

Meu processo começa quando eu tinha 16 anos, no meu primeiro namoro monogâmico longo, no qual perdi minha virgindade, durante todo o namoro só me relacionei com ele, mas depois de descobrir que era traída com frequência terminamos. Me mudei para SP onde conheci meu segundo namorado, outro namoro longo e monogâmico. Eu tinha 21 anos quando tive meu primeiro orgasmo, com esse segundo namorado. Achei aquilo um acontecimento, porque eu nunca tinha tido um antes, pensem comigo… só aí já são cinco anos onde eu só dei prazer e não recebi. Eu sempre servi meus namoros, não era como se faltasse sexo. Porém, orgasmo mesmo era um acontecimento pra mim e foi sendo assim até meus 29 anos.

Foto: Ronaldo Zanchetta

Tive vários namoros monogâmicos longos durante minha vida, dos meus 16 anos até os 29 anos eu namorei, passei a vida namorando, tive relações bastante intensas nas quais me apaixonei profundamente, até casada fui. O sexo era legal, quase como um esporte, mas olhando hoje penso “eu não fazia ideia do que estava fazendo”. Eu precisei casar, ter uma filha, me tornar mãe antes, ceder meu corpo para a maternidade, amamentar minha filha, pra só depois de tudo isso ter acesso a minha libido. Foram 14 anos dando prazer para homem, e o dia que percebi isso acho que foi o dia que estabeleci novas regras de comportamento pra mim mesma. Chegou um determinado momento da minha vida que já munida de conhecimento suficiente acerca de quem eu era, do que eu queria e do que eu não gostava, eu quis finalmente descobrir o que eu gostava.

Foto: Ronaldo Zanchetta

A partir de então eu só faria sexo de novo quando eu quisesse, não iria mais me submeter a transar com meu namorado só para satisfazer o desejo dele, percebi que isso era um desrespeito absurdo com todo o meu ser. O sexo mudou totalmente, eu descobri os sentidos de uma forma muito mais amplificada e sincera, conclui que o que eu entendia de sexo estava equivocado, moldado num consumo masculino e machista do sexo e do corpo feminino. O sexo pra ser bom mesmo tem que ser totalmente sincero e se não for pra me sentir totalmente a vontade é melhor não fazer, se eu fizer é só por que eu quero. Deixei pra trás o medo de como vão me ver, a raiva do assédio constante, os traumas que me machucavam, meus próprios julgamentos, os pecados da sociedade e tomei controle do que eu queria sentir no meu corpo e foi maravilhoso, é maravilhoso. Se o sexo não for assim, se não for leve, não for algo que te deixe a vontade então se poupe. Trabalhe seu emocional antes de tentar liberar todas suas paixões, mesmo por que as cobranças sociais são grandes, e a gente deve conseguir sustentar os próprios argumentos, então sejamos coerentes e cautelosos.

Hoje eu tenho 33 anos, estou acho eu, na melhor fase da minha vida, onde eu tenho total consciência de onde me encontro no mundo. Fiz meu primeiro ensaio fotográfico de nu artístico esse mês, usando o filme “The Dreamers” como referência, foi um momento muito interessante de vivenciar, aprender a se ver e se mostrar é um aprendizado diário que num ensaio como esse você encara e enfrenta mesmo suas barreiras. Uma foto como essa pode mudar como nós nos percebemos como pessoa, nos ver com o olhar de outro é realmente algo. Recomendo sim que mulheres posem pra um ensaio, do jeito que as fazem sentir bem, nuas ou não, acho que nós mulheres precisamos conseguir nos ver melhor, nos enxergar e amar como somos. Por isso digo que ainda estou em processo de me redescobrir, e não é somente no aspecto sexual, é como indivíduo, nós crescemos com a ajuda da formação de nossos pais, da escola e da sociedade, mas em algum momento nós precisamos nos desvincular desses valores e começar um processo de auto identificação para, como diria Nietzsche, transvalorar todos os valores que lhe foram passados (pela herança ou pela história) e determinar os que cabem na sua vida hoje. “Tornar-te quem tu és.” Nietzsche.

Como você se define? No mínimo como bissexual.

Qual é a sua opinião sobre como a sociedade encara a sexualidade feminina?

É uma forma bastante nociva, não se ensina educação sexual nas escolas, essa conversa ainda é bem atrasada aqui, os tabus que cercam a formação de uma moça é totalmente o oposto do ensinado aos homens. Aqui em Mirassol era comum ter festas de debutantes onde a menina que agora se tornara mulher, solteira, era apresentada para a sociedade, a festa de 15 anos. Onde o pai tem a primeira dança e a exibe perante os membros da sociedade. Todos vivemos isso, mas será que paramos para pensar nisso. Minha mãe era uma moça da alta sociedade de Mirassol, teve uma linda festa de debutante. São mensagens confusas que recebemos de todos os lados desde sempre, aqui no interior isso é bem estrutural e por isso que é tão chocante aqui ver uma foto com – pasmem – mamilos. É uma grande hipocrisia social, no meu ponto de vista, temos tantas questões urgentes e mais relevantes para serem debatidas, questões muito mais necessárias, enquanto se perde tempo com uma moral já há muito tempo já deveria estar superada. O frisson gerado pelo mamilo é maior do que o gerado pelo alto índice de feminicídio. É incoerente. Aqui no interior eu acho que essas questões são mais acentuadas, basta olhar pra Mirassol que com 110 anos de fundação somente esse ano tivemos a formação do primeiro coletivo feminista na cidade. Esse assunto aqui está em desfalque desde sempre, o que eu posso esperar de uma cidade que nunca debateu esse tema? Nada mais do que o que ela já é hoje, nociva. É nociva, mas acredito que boa informação e políticas públicas podem fazer a diferença. Que a moralidade dos costumes daqui não te façam perder o tesão na vida.

Foto: Ronaldo Zanchetta

Já sofreu algum preconceito por lidar de forma positiva com a sua sexualidade?

É engraçado pensar assim por que eu lido bem com a minha sexualidade hoje, por 14 anos estive muito mais preocupada com o prazer do meu namorado do que o meu e mesmo assim fui chamada de vagabunda tantas e tantas vezes. Hoje é uma coisa bastante superada. Ser referida de forma pejorativa deixou de me incomodar a partir do momento que me emancipei intelectualmente na faculdade de filosofia, quando paro pra pensar nisso lembro da música “Filosofia” do Noel Rosa. Eu já não me importo se a sociedade é minha inimiga. Uma questão que ainda pega é a exposição do corpo nas redes sociais, porque independentemente de como eu vejo o meu corpo, mesmo estando na minha rede muitos homens sentem isso como algum tipo de convite ao assédio. A percepção de que instagram é a vida da pessoa e que por estar exposto é algo determinado e nem sempre é isso. Parem pra pensar que as vezes a intenção é chamar atenção ou ser provocativa. A fotografia é um jeito de se perceber, principalmente quando é um ensaio profissional onde o fotógrafo traz uma proposta artística por trás. É lindo, não é um convite. É o corpo nu, despido de tudo e é só isso. Mas tenho consciência que não tenho controle sobre a percepção e o comportamento do outro, somente do meu, dito isso a postagem de uma foto de nu artístico era pra ser vista como uma foto apenas. Existem críticas reais à exploração da sexualidade do corpo feminino que feministas como eu apontam acidamente, todavia compreendo que uma mulher de burca ou despida será assediada, qualquer conteúdo pode virar pornografia na mão de qualquer pessoa, pois os impulsos sexuais são bastante subjetivos. Portanto se o ponto não é mesmo agradar o outro e sim como eu me vejo e me mostro pro mundo acho que sou coerente em dizer que me sinto livre o suficiente somente para ignorar os inúmeros assédios derivados disso e seguir meu percurso tão bem quanto me compete. Só toca meu corpo quem eu permito, não nego meu corpo nem meus impulsos, de toda natureza, avalio bem minhas paixões e impulsos, mas só chega a me tocar quem eu escolhi pra isso e fim de papo.

“… a moralidade não é outra coisa (e, portanto, não mais!) do que obediência a costumes, não importa quais sejam; mas costumes são a maneira tradicional de agir e avaliar. Em coisas nas quais nenhuma tradição manda não existe moralidade; e quanto menos a vida é determinada pela tradição, tanto menor é o círculo da moralidade. O homem livre é não moral, porque em tudo quer depender de si, não de uma tradição: em todos os estados originais da humanidade, “mau” significa o mesmo que “individual”, “livre”, “arbitrário”, “inusitado”, “inaudito”, “imprevisível”.” – Humano, demasiado humano (2).

Foto: Ronaldo Zanchetta

Sobre Carol:

Carol Drudi tem 33 anos e atua na linha de pesquisa da crítica e interpretação da filosofia nietzschiana. Nos anos de 2011 e 2012 esteve vinculada como estudante na Universidade Federal de Pelotas, participando como colaboradora do Grupo de estudos Nietzsche da UFPel, sendo editora do Blog do Grupo de Estudos Nietzsche da UFPel, no ano de 2012 como bolsista pela PROBEC pelo projeto do Blog do Grupo de Estudos Nietzsche da UFPel, recebendo orientação nesse mesmo projeto do Prof. Dr. Clademir Araldi. Participou da pesquisa “Nietzsche e os moralistas franceses” orientada pelo Prof. Dr. Luis Rubira. Ingressou no ano de 2013 na Universidade de São Paulo, no curso de filosofia, dando continuidade em sua pesquisa acerca de Nietzsche enquanto membro do GEN – Grupo de Estudos Nietzsche. Tem interesse nas áreas de crítica da moral, estética (Romantismo e a crítica do Romantismo) e na relação Nietzsche e La Rochefoucauld. Além da faculdade de Filosofia cursou Artes Visuais na Belas Artes em São Paulo, é professora de artes para crianças há mais de 10 anos. Hoje atua como promotora cultural através do Coletivo D.I.A. (Diversidade, Interior e Arte) e ativista social com o Coletivo Feminista Casa de Marias na cidade de Mirassol.

Foto: Ronaldo Zanchetta

1 – Referência Grupo de Estudos Nietzsche UFPel: La Rochefoulcauld e a influência em Nietzsche (grupodeestudosnietzsche-ufpel.blogspot.com)

2 – Referência Grupo de Estudos Nietzsche UFPel: Prefácio, Aforismos 9 e 14 – Livro I. (grupodeestudosnietzsche-ufpel.blogspot.com)

3 – SEUS, Beatrís da Silva. Simone de Beauvoir e a libertação da mulher: do existencialismo sartriano à moral da ambiguidade. Editora Phi: Porto Alegre, 2019.