Reflexões a Partir de Fragmentos do filme De Olhos Bem Fechados de Stanley Kubrick
Por Leandro Azeredo de Brito
“A serpente então alegou à mulher: “Com toda a certeza não morrereis! Ora, Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão, e vós, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal!” Quando a mulher observou que a árvore realmente parecia agradável ao paladar, muito atraente aos olhos e, além de tudo, desejável para dela se obter sagacidade, tomou do seu fruto, comeu-o e o deu a seu marido, que estava em sua companhia, e ele igualmente comeu.…” Gênesis 3:4-6
Há quem prefira transar de luzes apagadas. Se perguntados sobre o motivo, geralmente vão falar de vergonha, de timidez ou de insegurança com o próprio corpo. Mas se há uma verdade nisso, há também o outro lado da questão, um território mais desconhecido e misterioso. No escuro, de olhos bem fechados, o pensamento pode correr mais livre, ao sabor da imaginação e guiado pelas fantasias sexuais.
Quando se pensa em sexualidade, é inevitável pensar em corpos, em química e em forças biológicas. Sexualidade tem mesmo tudo a ver com o corpo, isso é mais que evidente. No sexo o corpo está em jogo, mas não somente ele. Isso porque o corpo humano, diferente dos outros corpos animais, é atravessado não só pela força química, biológica e corporal, mas também (e principalmente) pela palavra, pela cultura, pelo pensamento e pela imagem, num universo carregado de representação. Podemos pensar então que sexualidade tem tudo a ver com fantasia.
Desejo em Cena: o Espelho e o Curativo
No filme De Olhos Bem Fechados, de Stanley Kubrick, a questão do desejo é colocada em cena. O casal Bill e Alice, vão a uma festa na qual ela dança com um homem desconhecido, enquanto Bill, no mesmo ambiente, flerta com duas modelos. Na volta para o apartamento uma cena carregada de simbolismo vai introduzir um diálogo também emblemático, que é um dos pontos principais do filme. Alice se olha diante do espelho do armário do banheiro. Abrindo-o, escolhe entre os diversos frascos lá guardados, uma lata de band-aid, mas no lugar dos curativos, curiosamente havia na pequena lata um pouco de maconha. Toda narrativa até então nos leva a uma ideia de perfeição, um casal vivendo uma vida perfeita, mas atrás do espelho, a maconha no lugar do curativo indica uma ferida. É como se Bill e Aice estivessem no jardim do Éden e a maconha funcionasse como o fruto proibido.
Na cama, tragando a fumaça da maconha junto com Bill, Alice questiona se Bill a havia traído na festa com as mulheres que estava conversando, ao passo que revela ao marido que o homem com quem dançou havia proposto sexo com ela. Alice indagava, de forma indireta, sobre o desejo de Bill, como se dissesse: você ainda me deseja? Se me deseja, porque me deseja? Deseja outras mulheres? Que lugar eu ocupo no teu desejo? O marido, no entanto, apenas responde que entende o desejo do sedutor e que não sente ciúmes da mulher. A esposa continua: quando você, no seu consultório, examina uma mulher, o que você acha que ela sente ao ser tocada? Ele novamente responde com uma ingenuidade quase infantil, dizendo que as mulheres só desejam ser amadas e protegidas. Alice se senta no chão e revela sua fantasia.
O Que Deseja Uma Mulher?
Alice fala a Bill que certa vez, a simples visão de um oficial da marinha havia movimentado desejos desconhecidos, e após uma breve troca de olhares, sentiu-se tão atraída pelo desconhecido que pensou em deixar sua vida, marido e filha, se ele a desejasse. Ela conta que transou com o marido naquela tarde, mas que a imagem do oficial não lhe saía da imaginação, e por outro lado, nunca o marido lhe pareceu tão precioso e seu amor por ele, terno e triste.
Afinal, o que deseja uma mulher? Indagou Freud. No filme de Kubrick, Alice transforma em discurso uma experiência de gozo e espera ouvir uma palavra que se alinhe com seu desejo, tocar o Real pelo caminho do Simbólico. Ela quer alguém que a conduza na sua experiência de gozo, um herói que a permita transitar entre lugares e possibilidades do feminino, que sustente seu desejo sem entrar em pânico. Por isso olha para além do espelho. Mas Bill silencia e depois foge da cena, indo atender ao chamado de outra mulher, a filha de um paciente que havia acabado de morrer.
Alice ocupava um lugar de perfeição e adoração no imaginário de Bill. No início do filme, ela sentada na privada pergunta ao marido se está bonita e ele responde, sem olhar para ela: perfeita! Mas ao revelar sua fantasia, a perfeição imaginária se esvazia e o objeto de amor se converte em objeto de temor. Bill não consegue sustentar a fantasia da esposa e sai noite adentro pelas ruas, em busca da sua própria fantasia.
Sexo e Fantasia
A sexualidade no homem tende a ser mais genital, geralmente está associada à força, ao poder e a afirmação da própria virilidade. Bill, que é um médico bem sucedido, usa sua credencial médica como um passaporte para conseguir favores de pessoas ou entrar em lugares. Dando “carteiradas” ele produz seu gozo, mas no universo feminino, as fantasias são muito mais elaboradas, precisam contornar muitas proibições, encontrar em cenas e imagens elementos que funcionem como solução para conflitos que podem aflorar quando emerge a sexualidade plena, em todo seu potencial. O sentimento pode desencadear o desejo, e a fantasia feminina pode estar ligada a cenas românticas, envolvendo lugares e situações com seus parceiros.
Mas não só de fantasias românticas o desejo feminino é alimentado. A estrutura social patriarcal implica que muitas mulheres, desde pequenas, recebam mensagens contraditórias sobre sua sexualidade. São ensinadas a dizer não ao prazer, a assumirem uma postura passiva e a recalcarem seus desejos, numa tentativa de confinar a mulher em uma “natureza feminina” dessexualizada. Ser dominada por um homem forte e sedutor, ou a fantasia de ser forçada (que não se trata de uma situação real do sexo sem consentimento), amarrada e dominada, por exemplo, oferece uma solução para esse conflito, já que nessa situação existe a possibilidade de não se responsabilizar pelo seu desejo. Aliviando a culpa, o desejo reina mais livre.
O Feminino: A Esposa e a Prostituta
Bill segue noite adentro e encontra um velho amigo pianista, que revela que mais tarde tocará em um lugar em que acontecerá um ritual sexual, só permitido para iniciados. O amigo fornece uma senha de entrada para Bill, mas adverte o médico que ele também precisará de uma fantasia. O jovem médico se dirige então a uma loja chamada Rainbow, usando mais uma vez sua credencial de médico para conseguir ser atendido de madrugada. Essa sequencia nos convida a uma metáfora. Diz um ditado que aquele que chegar no outro lado do arco íris, muda de sexo. De certa forma, Bill busca por isso, pois a busca pela sua fantasia começa com a fantasia revelada da esposa. Bill fantasia a fantasia da esposa, o desejo dela passa a ser o seu desejo.
Cenas breves de Alice transando com o oficial lhe tomam momentaneamente. Ele busca decifrar o enigma do desejo feminino. Bill se mostra extremamente ingênuo em todo o filme, e a ingenuidade escapa num sorriso incessante e bobo. Ela se mostra em cenas em que o médico demonstra não saber ao certo o que quer, como quando mais cedo é encontrado na rua por uma prostituta. Ela o leva para sua casa, e quando pergunta ao jovem médico o que quer que ela faça, ele não sabe o que responder. Devolve para ela: o que você sugere? Bill busca saber algo do desejo feminino, o esvaziamento da imagem idealizada de sua esposa, ou seja, um feminino santificado, o leva ao encontro de um feminino que ocupa o lugar avesso: a prostituta.
Para Além do Espelho
O filme é carregado de simbolismos e pode ser explorado em muitos outros aspectos, esses são apenas os principais para falarmos de sexualidade e fantasia no momento. O que podemos considerar é que a fantasia, embora tenda a desembocar num lugar mais estreito, que é o ato sexual em si, é muito mais abrangente que o próprio coito. É por isso que o sexo é muito mais do que química, do que um encontro de corpos. Na cena final, Alice propõe há uma urgência: que transem! É preciso que cada parceiro consiga exercer o papel de depositário das fantasias do outro, que as sustente, possibilitando que a cena não se limite ao que está dado na realidade. É preciso fazer a travessia até o outro lado do arco íris, decifrar suas próprias fantasias e a fantasia do outro, para além do espelho.
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Materia incrivel , por mais conteudo assim , adorei ❤️